sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

À MARGEM - LÍMIA

Não sei o porquê, hoje deu-me para relembrar dois textos que escrevi e foram publicados na “límia Revista Regional”.
O primeiro, na n.º 11 de Outubro de 1994, intitulado “Pequeno Comércio – Entre a espada (os Hipermercados) e a parede (os preços) ”, rezava o seguinte:
...”Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos, mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”...
Isto pregava o Padre António Vieira, na cidade de S. Luís de Maranhão, pelo ano de 1654. Assim continua em 1994. Que o digam os pequenos comerciantes a verem a quota de mercado a ser vorazmente engolida pelas grandes superfícies (de 11,7%, em 1988, ultrapassam já os 32%).
É conhecido, em Portugal cada loja é destinada a 263 habitantes, muito longe da média comunitária de uma para cerca de 600 pessoas, e ainda mais de países como a Alemanha, França e Inglaterra, com uma ou menos para 1.000 potenciais clientes. Acrescendo o nosso poder de compra ser inferior em 35,5% à média da União Europeia, será linear constatar que aqui reside o cerne das dificuldades, neste país onde a filosofia prevalecente parece ser: se dá para o vizinho, vou fazer também o meu.
Sendo inegável o direito à procura da satisfação das necessidades financeiras e o micro-comércio se apresentar, para muitos, como a solução mais apetecível, se não a única, pois a falta de alternativas tentadoras em outros sectores, o tipo de preparação exigido, o investimento e o risco, desaconselharem diferentes planos, bom seria que os empreendedores criassem auto-disciplina, tendente a evitar a saturação de actividades, e os poderes assumissem claramente uma postura, se não reguladora, pelos menos esclarecedora e dessem combate eficaz às concorrências ilegais.
A mesma ou maior importância tem o factor preço. Não subsistam ilusões: os apoios, a modernização, a preparação profissional, de pouco servirão se, para produtos similares, as micro-empresas apresentarem preços substancialmente mais elevados do que as grandes superfícies. É ainda incipiente o resultado neste campo. No retalho não são 10.000 as associadas de centrais de compras e não devem ultrapassar 25.000 os comerciantes clientes. Para negociar preços e condições de pagamento idênticas às obtidas pelos hipermercados é necessário muito mais.
Sem resolver estas questões nenhuma panaceia resultará com eficácia generalizada. O hipotético encerramento das grandes superfícies ao domingo pode, nas condições actuais, representar, quanto muito, um aumento de 1,5 a 2% da quota de mercado a distribuir pelo outro tipo de comércio, e a alternativa à questão preços só será viável para vectores muito específicos que apresentem diferenciação e alta qualidade e, pontualmente, para quem aposte na conjugação de entrega ao domicílio e venda a crédito, ou outras medidas similares, mas marginalizará número significativo de estabelecimentos.
As forças em confronto são desiguais. Os 40 hipermercados empregam 20.000 trabalhadores, os cerca de 200.000 comerciantes ocupam 700.000 pessoas, atenuam a desertificação dos centros urbanos e permitem, entre outras, uma importante movimentação imobiliária.
Certo é o país não ter estrutura que amorteça e absorva o ruir em massa do micro-comércio. Às enormes dificuldades da agricultura e das indústrias tradicionais não pode o Estado, cuja função fundamental é satisfazer o bem-estar das populações, permitir-se juntar o comércio. Até porque ele não ignora, por detrás de aparências publicitárias e das pressões dos grandes grupos, que são as micro-empresas (0 a 9 trabalhadores), em toda a União Europeia, o garante da estabilidade social e, nos últimos anos, os únicos criadores líquidos de postos de trabalho. Para além de representarem 93% das empresas e, em companhia das pequenas e médias, serem responsáveis por 70% do emprego privado da indústria, comércio e serviços.
Enfim: se os grandes continuam a comer os pequenos, são os pequenos que alimentam o Mundo.
O segundo, de Março de 1995, inserido na revista n.º 14, afirmava que “Ninguém é feliz sozinho” e dizia:
Ensinou-nos Miguel Torga que “ninguém é feliz sozinho”.
Penso ser correcto perceber, subjacente a esta frase, um forte apelo à solidariedade, ao partilhar empenhado.
E é preciso recordar tão sábias palavras quando os valores dominantes propagam um egoísmo doentio, um desrespeito mórbido pelos semelhantes, como para esquecermos que por maior que seja a nossa relevância pessoal ela é apenas diferente da dos outros e, seguramente, em muitos aspectos, de menor importância. Como se fosse possível, e tais comportamentos lhe incutissem substrato, ludibriar essa inquestionável realidade: a de estarmos na vida de passagem.
Se por convicção ou outros propósitos menos altruístas, mas ainda assim positivos, temos consciência da necessidade de atacar os factores geradores da crescente exclusão social estamos a abrir um pequeníssimo buraco de luz em imenso círculo negro de prevalecentes interesses mesquinhos. E mesmo que esse combate se confunda, por vezes, com mal disfarçados propósitos de promoção não pode ser linearmente rejeitado. Neste assunto, todos os apoios são exíguos.
O problema é complexo. De facto, embora os recursos naturais não sejam inesgotáveis, a pressão sobre os mesmos venha em constante aumento, fruto, entre outros, do crescimento demográfico e do consumismo, e o homem os tenha utilizado e desperdiçado abusivamente, até agora e com maior intensidade nas últimas décadas, não é ainda por falta deles, em termos planetários, que a exclusão subsiste. As causas são múltiplas. Mas o seu verdadeiro cerne é que ela é o caldo de cultura dos negócios ilegais, preponderantes na economia mundial.
São forças e interesses poderosos, tentaculares e implacáveis que tentam impedir a entravar qualquer luta eficaz, por muitas boas vontades em contrário congregadas. É uma batalha difícil, requer estratégias globais e persistentes e necessita, para poder proliferar, do empenhamento das comunidades locais, mais sensíveis ao flagelo e em contacto directo com o mesmo e seus efeitos.
Se almejamos um porvir minimamente saudável e tranquilo, vamos acordar que se faz tarde. Mas despertemos conscientes destas premissas:
1- Se não for permitido às pessoas a possibilidade de vida digna, as condições de subsistência vitais, não nos podemos admirar que as mesmas as procurem por todas as formas;
2- Se não apostarmos numa educação humanizada, solidária, que faça do respeito pela existência princípio fundamental de conduta, os apelos às facilidades encontrarão sempre eco em amplos sectores de todos os extractos sociais;
3- Se não descobrirmos, sem delongas, um outro relacionamento entre o nosso estar económico e social e a natureza e seus bens todos os esforços serão inúteis, o futuro será não haver.
Que se escreva, com urgência, em todas as vidas: “ninguém é feliz sozinho”.

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