Revela este título a modéstia dos seus autores. Catarina Dantas e Luís Dantas trazem, neste trabalho de encalço global, um círculo de imaginação, investigação e ternura, um espectáculo de escrita e imagem que nos introduz, fielmente, nesta muito antiga arte onde, nas suas diversas especialidades, tudo se desafia: as convenções, as certezas triviais da nossa existência, a própria vida. Arte tão subversiva que, como muito apropriadamente recolhem os autores nas páginas do livro, Ernest Hemingway disse ser o circo “o único lugar do mundo onde se pode sonhar de olhos abertos”.
Já o indiciei, reforço-o, digo-o com outra roupagem, quiçá mais aconchegante ao corpo temático: se o afecto se pode imprimir aqui o temos, neste volume, um verdadeiro gesto de ternura para com as personagens de uma actividade mesclada de encanto e dificuldade, sem, no entanto, descuidar o rigor histórico.
Outra constatação se pode extrair, isenta de qualquer favor, desta publicação: o Circo é, pelo menos na sua expressão moderna e já para diversas gerações, suavizada a componente sensual que noutros tempos atraía muitos assistentes, um espectáculo de família. Verifique-se como a pena do Luís Dantas, a objectiva e o risco da Catarina Dantas, pai e filha, assistem, juntos, ao desenrolar da representação e como dela se deixam impregnar. Também aqui a carga de rebeldia do circo não é negligenciável.
Fiquemos com estas premissas, esbatamos as transformações que a roda da história vai pisando, empoeirando gostos e crenças, abeirando-se de novas formulações, mecânicas, funcionais, estéticas e éticas, e partamos sem daqui sair, pois é de Ponte de Lima que vamos falar, ao encontro de alguns dos elementos que a obra nos revela e estimula.
Situemo-nos na página 27 do livro e citemos: ”No século XII, o lugar de Ponte não era pobre, nem pouco povoado, nem desprovido de acessos porque tinha o rio, os atalhos, a ponte e a estrada da época dos romanos a servir o vaivém da feira, das festas, das tropas e das jornadas peregrinas. Por aqui passavam os bufões, que tinham acompanhado a turbamulta dos mercenários suevos, a arregalar a assistência com o atrevimento das suas danças, velhacarias, diabruras, chistes, caretas e disfarces: a cabeleira, o ceptro, as roupas coloridas e extravagantes – calças largas, barrete tricórnio com guizos. Apareciam também os mímicos a contar historietas em contorções do corpo e piscar de olhos. Mais tarde, no tempo da vila medieval, chegam outros marginais: menestréis, jograis, bailarinas, ciganas, charlatães e trupes de saltimbancos.”
Deixando a citação, saltemos, como que por arte de ilusionista, até ao fim da terceira e para a quarta parte da obra que, da página 62 à página 94, nos relata momentos de circo nas Feiras Novas, nos teatros de D. Fernando e Diogo Bernardes e noutras ocasiões e locais, tendo como limite temporal os finais dos anos 50 do século transacto. Vemos desfilar, ao correr das eras, renovadas figurações de um entretenimento vetusto, as suas conivências e vivências, os entrelaçamentos com o burgo, o agitar, pelo gracejo, som, colorido e movimento, a nossa terra.
Particularizemos alguns desses momentos, mesmo que para isso, por vezes, saiamos em redor do texto.
Em 1868, no início de Março, chegava a Ponte de Lima uma companhia equestre – “a trupe de Joanny Amory também levou o círculo encantado dos cavalinhos a Ponte de Lima”, refere a página 62 deste trabalho – e por cá ficou cerca de 20 dias, com exibições diversas na Praça de Touros. Pasme-se! Ainda a trupe cavalgava noutras paragens, e a troco de supostas pressões para a escolha da música que havia de tocar nos espectáculos, as facções políticas do nosso burgo, acolitadas pelos seus plumitivos, invectivavam-se reciprocamente. Já, então, a “Música Velha” e a “Música Nova” eram a expressão bem sonora das rivalidades entre os Regeneradores e os Progressistas, que, variadas vezes, lamentavelmente, passaram das palavras e picardias às varadas e outras agressões físicas, como, por exemplo, no conflito ocorrido no primeiro dia de Dezembro de 1875, aquando do lançamento do jornal “O Commercio do Lima”, e que nós conhecemos, na sua parte mais amena, daquela tirada de um jornal lisboeta de “o bombo ficou gravemente ferido, e a caixa de rufo apresenta uma ferida incisa de 2 centímetros de profundidade” e, também, do desenho alusivo de Sebastião Sanhudo, em que os instrumentos servem para tocar outras coisas e não notas musicais.
É precisamente Sebastião de Sousa Sanhudo que, a não existir por estas paragens um homónimo, vamos encontrar, como componente da Sociedade Dramática do Casino Limarense, um “teatro particular de instrução e recreio”*, com “abertura solene”* a 29 de Janeiro de 1868, em diversos espectáculos, quer no referido Teatro do Casino Limarense, quer no Teatro de D. Fernando, e, ao que parece, com apreciáveis qualidades de actor e prestigiador, usando o nome de Sebastião de Sousa. Poderá ter sido um dos primeiros limarenses a deixar-se seduzir pelas artes circenses, o que talvez, mais tarde, o tenha ajudado a tirar da cartola surpreendentes caricaturas.
Essa sedução persistiu em muitos outros nossos conterrâneos, senão como executantes, como apreciadores. Convém referir até, admitindo como correcta a notícia inserida no número 69 do jornal Vida Nova, de 18 de Março de 1893, transcrevendo da memória descritiva do novo teatro de Ponte do Lima, facultada pelo seu autor, António Adelino de Magalhães Moutinho, que “o projecto apresentado tinha sido de um teatro-circo, mas atendendo que um edifício desta natureza era inútil para uma localidade de província que não possui elementos para sustentar uma companhia equestre, e porque é muito dispendiosa a sua construção, os promotores desistiram da primeira tentativa e resolveram verter em realidade o projecto que hoje apresentamos.”
Essa alteração, como sabemos e no livro agora em lançamento são descritos significativos exemplos, não impediu que o Teatro Diogo Bernardes, inaugurado em 1896, recebesse, no seu palco, muitos espectáculos e artistas de circo.
Idêntica e confessada sedução levou Luís Dantas, acompanhado da Catarina, a espelhar, nas páginas desta obra, “O Circo em Ponte de Lima” nas ruas, nas praças, nos salões de madeira, sem toldo, no redondel de lona, entre tristezas e alegrias, êxitos e fracassos, recebido ora com entusiasmo e bonomia, quer com desconfiança ou indiferença, e, quase sempre, recolhendo a compreensão solidária dos homens dos jornais da terra, muitos deles, almas de artistas cabriolando em papel e tinta.
E é, ainda, essa alma de artista que os autores convocam ao reservar aos palhaços, os protagonistas da função mais emblemática de todas as que no Circo se desempenham, a marca perene duma actividade rebelde e cativante, o fecho da obra.
Não nos alonguemos. Abramos o livro e assistamos ao maior espectáculo do mundo... também na nossa terra.
*- O Echo do Lima, n.º 151, 30 de Janeiro de 1868.
Nota: Texto lido, a 3 de Abril de 2009, no Auditório da Biblioteca Municipal de Ponte de Lima, aquando da apresentação do livro.
Já o indiciei, reforço-o, digo-o com outra roupagem, quiçá mais aconchegante ao corpo temático: se o afecto se pode imprimir aqui o temos, neste volume, um verdadeiro gesto de ternura para com as personagens de uma actividade mesclada de encanto e dificuldade, sem, no entanto, descuidar o rigor histórico.
Outra constatação se pode extrair, isenta de qualquer favor, desta publicação: o Circo é, pelo menos na sua expressão moderna e já para diversas gerações, suavizada a componente sensual que noutros tempos atraía muitos assistentes, um espectáculo de família. Verifique-se como a pena do Luís Dantas, a objectiva e o risco da Catarina Dantas, pai e filha, assistem, juntos, ao desenrolar da representação e como dela se deixam impregnar. Também aqui a carga de rebeldia do circo não é negligenciável.
Fiquemos com estas premissas, esbatamos as transformações que a roda da história vai pisando, empoeirando gostos e crenças, abeirando-se de novas formulações, mecânicas, funcionais, estéticas e éticas, e partamos sem daqui sair, pois é de Ponte de Lima que vamos falar, ao encontro de alguns dos elementos que a obra nos revela e estimula.
Situemo-nos na página 27 do livro e citemos: ”No século XII, o lugar de Ponte não era pobre, nem pouco povoado, nem desprovido de acessos porque tinha o rio, os atalhos, a ponte e a estrada da época dos romanos a servir o vaivém da feira, das festas, das tropas e das jornadas peregrinas. Por aqui passavam os bufões, que tinham acompanhado a turbamulta dos mercenários suevos, a arregalar a assistência com o atrevimento das suas danças, velhacarias, diabruras, chistes, caretas e disfarces: a cabeleira, o ceptro, as roupas coloridas e extravagantes – calças largas, barrete tricórnio com guizos. Apareciam também os mímicos a contar historietas em contorções do corpo e piscar de olhos. Mais tarde, no tempo da vila medieval, chegam outros marginais: menestréis, jograis, bailarinas, ciganas, charlatães e trupes de saltimbancos.”
Deixando a citação, saltemos, como que por arte de ilusionista, até ao fim da terceira e para a quarta parte da obra que, da página 62 à página 94, nos relata momentos de circo nas Feiras Novas, nos teatros de D. Fernando e Diogo Bernardes e noutras ocasiões e locais, tendo como limite temporal os finais dos anos 50 do século transacto. Vemos desfilar, ao correr das eras, renovadas figurações de um entretenimento vetusto, as suas conivências e vivências, os entrelaçamentos com o burgo, o agitar, pelo gracejo, som, colorido e movimento, a nossa terra.
Particularizemos alguns desses momentos, mesmo que para isso, por vezes, saiamos em redor do texto.
Em 1868, no início de Março, chegava a Ponte de Lima uma companhia equestre – “a trupe de Joanny Amory também levou o círculo encantado dos cavalinhos a Ponte de Lima”, refere a página 62 deste trabalho – e por cá ficou cerca de 20 dias, com exibições diversas na Praça de Touros. Pasme-se! Ainda a trupe cavalgava noutras paragens, e a troco de supostas pressões para a escolha da música que havia de tocar nos espectáculos, as facções políticas do nosso burgo, acolitadas pelos seus plumitivos, invectivavam-se reciprocamente. Já, então, a “Música Velha” e a “Música Nova” eram a expressão bem sonora das rivalidades entre os Regeneradores e os Progressistas, que, variadas vezes, lamentavelmente, passaram das palavras e picardias às varadas e outras agressões físicas, como, por exemplo, no conflito ocorrido no primeiro dia de Dezembro de 1875, aquando do lançamento do jornal “O Commercio do Lima”, e que nós conhecemos, na sua parte mais amena, daquela tirada de um jornal lisboeta de “o bombo ficou gravemente ferido, e a caixa de rufo apresenta uma ferida incisa de 2 centímetros de profundidade” e, também, do desenho alusivo de Sebastião Sanhudo, em que os instrumentos servem para tocar outras coisas e não notas musicais.
É precisamente Sebastião de Sousa Sanhudo que, a não existir por estas paragens um homónimo, vamos encontrar, como componente da Sociedade Dramática do Casino Limarense, um “teatro particular de instrução e recreio”*, com “abertura solene”* a 29 de Janeiro de 1868, em diversos espectáculos, quer no referido Teatro do Casino Limarense, quer no Teatro de D. Fernando, e, ao que parece, com apreciáveis qualidades de actor e prestigiador, usando o nome de Sebastião de Sousa. Poderá ter sido um dos primeiros limarenses a deixar-se seduzir pelas artes circenses, o que talvez, mais tarde, o tenha ajudado a tirar da cartola surpreendentes caricaturas.
Essa sedução persistiu em muitos outros nossos conterrâneos, senão como executantes, como apreciadores. Convém referir até, admitindo como correcta a notícia inserida no número 69 do jornal Vida Nova, de 18 de Março de 1893, transcrevendo da memória descritiva do novo teatro de Ponte do Lima, facultada pelo seu autor, António Adelino de Magalhães Moutinho, que “o projecto apresentado tinha sido de um teatro-circo, mas atendendo que um edifício desta natureza era inútil para uma localidade de província que não possui elementos para sustentar uma companhia equestre, e porque é muito dispendiosa a sua construção, os promotores desistiram da primeira tentativa e resolveram verter em realidade o projecto que hoje apresentamos.”
Essa alteração, como sabemos e no livro agora em lançamento são descritos significativos exemplos, não impediu que o Teatro Diogo Bernardes, inaugurado em 1896, recebesse, no seu palco, muitos espectáculos e artistas de circo.
Idêntica e confessada sedução levou Luís Dantas, acompanhado da Catarina, a espelhar, nas páginas desta obra, “O Circo em Ponte de Lima” nas ruas, nas praças, nos salões de madeira, sem toldo, no redondel de lona, entre tristezas e alegrias, êxitos e fracassos, recebido ora com entusiasmo e bonomia, quer com desconfiança ou indiferença, e, quase sempre, recolhendo a compreensão solidária dos homens dos jornais da terra, muitos deles, almas de artistas cabriolando em papel e tinta.
E é, ainda, essa alma de artista que os autores convocam ao reservar aos palhaços, os protagonistas da função mais emblemática de todas as que no Circo se desempenham, a marca perene duma actividade rebelde e cativante, o fecho da obra.
Não nos alonguemos. Abramos o livro e assistamos ao maior espectáculo do mundo... também na nossa terra.
*- O Echo do Lima, n.º 151, 30 de Janeiro de 1868.
Nota: Texto lido, a 3 de Abril de 2009, no Auditório da Biblioteca Municipal de Ponte de Lima, aquando da apresentação do livro.
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