sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

MILAGRE DE NATAL



Não sei porque diabo o brutamontes estava sempre a implicar com o ganapo. Mal o infeliz sussurrava um ai, logo lhe bramia ameaças de ossos partidos e cabeça aberta. Com ele, o pirralho não tentasse dar-se ares – era bulir e boca cerrada. Só não o obrigava a labutar, feito ponteiro de relógio de sol, devido às constantes reprimendas da professora e do padre.
- E se ao menos lhe enchessem o bucho! – praguejava sempre que o advertiam de que assim o demandariam.
Do padre, vingava-se frequentando a igreja da freguesia mais próxima.
- E a professora que não esperasse pela demora! – dizia em surdina.


A aldeia tinha estagnado, o tempo esquecera-se dela. Escondida entre montes íngremes, permanecia como museu vivo duma história já acabada. E, isolados, os habitantes não embarcaram nas levas sucessivas que transportaram os homens das nossas terras até às estranjas de trabalho árduo, mas de pecúlio quase afiançado. Por isso, naquele lugar, as vestes das mulheres não perderam o colorido – nisso a ninguém invejavam. E nem uma única casa se avistava couraçada daquelas formas esquisitas com que os emigrantes parecem afrontar, em misto de catarse e vingança, a lembrança dos tempos difíceis que os obrigavam a abalar dos seus quinteiros queridos. Não fora o reclamo luminoso, pisca-pisca, que o ti Manel plantou à porta da venda e, ao crepúsculo, qualquer viageiro, por estranha força conduzido àquelas paragens, pensaria ter recuado no tempo – como se os anos não morressem e neles pudéssemos viajar livremente.


O António Canta-de-Galo, assim era conhecido por ser o mais madrugador da freguesia, não atinava como da sua meninice para a do filho as coisas mudaram a ponto de uma criatura já não mandar nos seus. O pai sempre lhe repetia que um homem faz-se a trabalhar. Como é que queriam que encaixasse, de ânimo leve e falas mansas, aquilo de o rebento precisar de pachorra e folguedo para poder aprender, para se tornar numa pessoa a sério? Por mais sermões do abade, ou lições da professora, tal não era doutrina para a sua religião!
E o Antoninho Que-não-Pia, pois a alcunha do progenitor e as desditas da vida sempre lhe haveriam de prantar aquele apodo de sofredor!, lá ia crescendo, a bem dizer, só de corpo; no seu cérebro não conseguiam permanecer muito tempo as letras e os números, num entra e sai ao sabor da persistência fugazmente vitoriosa da professora e do padre ou da casmurrice do pai.


Na casa do António Canta-de-Galo a ceia de Natal era vespertina. Mal o sol recolhia os últimos raios lânguidos, já ele abalava a corta-mato até arribar, após calcorrear umas fartas horas, à freguesia onde acertava contas com Deus. Há dois anos a tanto sacrifício obrigava a birra com o cura, em domingos, feriados e naquela noite, pois não perdia uma Missa do Galo.
Afrontava o caminho sem temor, sozinho, e não se prendia em contemplações ou conversas. Ouvida a missa, estugava o passo e lá regressava aos seus afazeres. Como sempre, assim procedeu.
Ao passar no Monte Branco, curiosa pincelada de cal nas tonalidades verdes e castanhas da paisagem, a quem nem a noite consegue ocultar, ouviu uma voz que o chamava. Surpreendido, estacou, tentando perceber de onde saíra aquele falar.
- António, António, escuta-me com atenção. Eu sou o filho de Deus, feito homem, e vou aparecer, no dia em que comemorais o meu nascimento, para te revelar uma verdade que ignoras.
De repente, um clarão atravessou o ar, a figura de Cristo surgiu junto à encosta do monte e disse:
- António, a escola e as brincadeiras das crianças são criações do meu Pai. Não deves por isso impedir o teu filho de brincar e de estudar.
Num ápice, o corisco desapareceu e Cristo parecia ter entranhado pelo monte. António, atordoado, permaneceu estático alguns minutos e, depois, avançou a caminho da aldeia. Antes de abeirar a casa, passou na taberna do ti Manel, eram cerca de quatro da matina, e, primeiro levemente, logo impaciente, com vigor, desatou a bater à porta. Estremunhado, o ti Manel acercou-se da janela, no andar por cima da locanda, e vislumbrando, entre o tremular do anúncio, o António Canta-de-Galo, abismou-se.
- Ó António, homem, que diacho queres tu a estas horas?
Tartamudo, o António mal se conseguia explicar. O ti Manel apenas cobrou caderno, lápis, à força do outro moer essas palavras. Decidiu descer e qual não foi o seu assomo quando toscou que o António Canta-de-Galo o espertou a desoras para o fazer mercar-lhe um lápis e um caderno. Aviado, o Canta-de-Galo lá abalou para o seu tecto.
O Antoninho, ao acordar, avistou, aos pés da cama, um caderno e um lápis, a estrear, e, intrigado, foi questionar a mãe da procedência daquilo. Perplexa, a mãe, que nada sabia, indagou o marido sobre o achado do filho. António Canta-de-Galo, mostrando-se agastado, vociferou ter sido obra do padre, sempre pronto a desmandá-lo. O Antoninho Que-não-Pia acreditou piamente naquela alegação, tendo como certo que do pai não podia ter partido semelhante mimo. Se ele, mal ouve falar em lápis, caderno, livro, larga logo cachaço!
No dia do recomeço das aulas, após o feriar natalício, entre a petizada ruidosa, que se aproximava, a professora enxergou o Antoninho, todo janota de caderno e lápis, lustrosos, bem presos na sua mão fechada. Desde então, nunca mais o Antoninho faltou à escola e começou também a bandear-se, foliando, feliz. A mudança foi de tal monta que mesmo o cognome, pasme-se, sofreu ajuste. Agora, Antoninho, é o Que-já-Pia.

- Senhor Padre, aquela ideia da projecção fez um milagre, foi remédio santo. Mas não teremos praticado sacrilégio?
- Quê, minha filha, Cristo deve ter rido com gosto. E a Igreja que faça o mesmo. Sabes, uma Igreja que não sabe rir não é humana.
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Ilustração: Catarina Dantas (a quem agradeço).

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