quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Ano Internacional do Planeta Terra

Naquele dia a madrugada não adormeceu. Por muito que o Sol arremetesse os raios contra a muralha de breu, eles eram absorvidos e pintados de negro, tão carregado como o luto das nossas aldeias minhotas.
A princípio, ninguém pareceu demasiado preocupado. Em anteriores ocasiões de duelo sempre o Sol saíra vencedor, enchendo de sorriso os lábios das crianças e os lençóis dos poucos rios que ainda ousavam acordar, despidos e felizes. Porém, nessa, a madrugada teimava em resistir, casmurra e insensível ao choro dos petizes impacientes de brincadeiras adiadas. E só então os adultos se aperceberam e, embasbacados, entreolhavam-se, perplexos e impotentes, sussurrando lamúrias desconexas e gritando impropérios estéreis. Tarde demais.
Tudo começara quando o homem se esqueceu do homem. Naqueles tempos o respeito era repartido, em exclusivo, entre o ter e o poder. Ter sem medida, poder sem conta.
Para fruição egoísta de efémeros gozos de vaidades bacocas, os humanos cegavam a partilha, a solidariedade, o equilíbrio com os outros seres vivos e o planeta que, resignadamente, aceitava ser esventrado, violado e ofendido por tão baixa razão.
Há muito que ele sentia a gangrena a progredir, inexorável, apagando-lhe força e querer, mas, generoso, amontoava umas réstias de vigor para ir alimentando aquele bicho, predador sem rival.
E como era ingrato! Sempre que se revoltava e eliminava alguns humanos – à sua fúria mais conhecida chamavam temporal – choviam as acusações, soezes, desmedidas, grosseiras. E, desfaçatez suprema, vindas do destruidor inato, desrespeitador da sua própria espécie.
Ele enviava sinais inequívocos de saturação eminente e os homens, fingindo-se preocupados, organizavam encontros, debitavam palavras a esmo, prometiam medidas enérgicas... regressavam às suas vidas rotineiras e as decisões esfumavam-se como nevoeiro a fugir ao Sol.
Ali tinham o resultado, nem todo o poder na Terra, conjugado, nem toda a riqueza do Planeta, amontoada, lhes poderiam valer
[de Fragmentos de Sombras, 1996]

2 comentários:

Porfírio Pereira da Silva disse...

Brilhante. Adorei!

Jose Laranjo disse...

Com 10 anos de antecedência, uma constatação que cada vez se torna mais e mais irreversível! Parabéns Jose De Sousa Vieira!