sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O KIOSQUE DO VENTURA

O KIOSQUE DO VENTURA

José Sousa Vieira



      Plácido era o nome do morador que, por Portaria Régia[1], foi autorizado a efectuar obras na parte exterior da sua casa contígua à Ponte (de Ponte de Lima), do lado norte.
      Com placidez ou não decorreu a utilização desse local, a mando do conhecido comerciante Plácido Pereira de Araújo, que no ano da sua morte, 1902[2], tinha sido Presidente da Direcção dos Bombeiros Voluntários de Ponte de Lima.
     Na posse de Boaventura José Alves, apesar da enorme e prolongada resistência às tentativas das autoridades e da principal imprensa local e às inclemências climáticas que tão mal tratada deixaram a sua vizinha, por exemplo, no dia 22 de Dezembro de 1909, lá se foi aguentando até 1913 e deixando tentáculos de ironia e memória por muito mais tempo.
     Porquê ficou conhecido como «Kiosque do Ventura» não sabemos. Tanto mais que, na realidade, para «Kiosque» no largo de Camões, tinha solicitado Boaventura José Alves a respectiva licença (Sessão da Câmara Municipal de 22 de Abril de 1905), a mesma lhe tinha sido concedida nesse ano, a 27 de Maio, e pelo período de dois anos, «conforme o desenho junto ao requerimento, e as mesmas medições, diâmetro e base rectangular, em frente da casa do requerente e a dentro do caixilho de cantaria, do mencionado largo de Camões…»[3], mas, primeiro porque o tempo de licença concedido não lhe parecia susceptível de justificar o investimento, depois, sendo o tempo aumentado para nove anos se condicionado a hasta pública, porque possivelmente não se quis sujeitar à mesma, o «Kiosque», o do Ventura, não passou de intenção, como confirma, em novo requerimento que lhe foi indeferido[4], o próprio Boaventura José Alves.
    O que sabemos, sem mais recuadas indagações, é que logo no seu segundo número, datado de 30 de Agosto de 1906, o jornal O Commercio do Lima (um novo, não aquele em que António Feijó tinha criado, em 1880, a sua história dos Carecas) reclamava: «urge que o principal Largo da nossa vila seja embelezado como merece, retirando-se daí esse casarão, verdadeira monstruosidade repelente.»
   Em número posterior[5] é na gazetilha, da responsabilidade de Risonho[6], com a ironia própria dessas criações, que volta o espaço. «…Eis logo à entrada a figura/Feita de lousa e caliça/Da soberta arquitectura/Do chalet-cavalariça/Do nosso amigo Ventura./(…)».
   Mais tarde[7], Risonho volta ao assunto, com o cepticismo que os temas provocavam. «… Quando a neve fôr escura,/E, quando o fogo cair/Em orvalho à terra impura;/Quando fizerem cair/O tal chalet do Ventura;// Posto que se vê que anima/O patriotismo a quem/Nos representa lá em cima,/Só então é que nos vem/A linha do Val’ do Lima.»
   Entretanto[8], já se tinha escrito que «ali à boca da ponte, junto ao largo de Camões, num dos locais mais formosos e no mais frequentado desta vila, levanta-se, pesado como a abóboda dum cárcere, negro como as intenções dum criminoso, repelente como um espectro, destoante como mancha escura em nevado arminho de pureza, um casarão indecente, um pardieiro infecto!». E prosseguindo outras afirmações com o mesmo dramatismo, continua: «Para quê?/ Para ficar aí um atestado eloquentíssimo de que o egoísmo no poder obceca os homens a ponto de sustentarem caprichos com que nada lucram e com que muito prejudicam. / Não vemos que outra razão assista a quem teima em conservar esse montículo de pedras denegridas e de tábuas sujas e mal pregadas, desfeando notavelmente este formoso local e cobrindo-nos de ridículo aos olhos de quem nos visita.» E, entre outras considerações, explica que «duas vezes se fez dotação para demolir o prédio em que vimos falando, mas ninguém se aproveitou do dinheiro e da ocasião. E porquê? Lá está o egoísmo no poder que cria loucos caprichos que se pretendem sustentar! …».
No mesmo jornal[9], percebemos que a dotação para a expropriação de «o Kiosque do Ventura» não surte efeito devido à «inconcebível - ainda politicamente considerada – protecção ao proprietário, ou arrelia ao nosso senhorio» (o tal prédio do Boaventura frenteava o edifício onde, então, se instalava a redacção do jornal e, também, a tipografia Confiança em que ele era impresso).
     No início do ano seguinte[10], é o Presidente da Comissão Administrativa da Câmara, António de Magalhães…, ao revelar a Portaria, até então esquecida, a criar novas expectativas aos defensores da demolição do edifício. De facto, diz-nos ele, que a licença para se efectuarem as obras obrigava o requerente «a seguir na execução das ditas obras as indicações que lhe fossem feitas pela direcção das Obras Públicas do distrito e a assinar termo em que ficasse claramente estatuído que, quando o Estado precisasse adquirir, para alargar a ponte ou para qualquer outro fim de utilidade pública o terreno do leito do rio que ia ocupar, não exigiria ele requerente indemnização alguma por esse terreno, sobre o qual não tinha direito algum de propriedade e apenas a posse que por aquele diploma lhe era permitida, e que não poderia igualmente receber indemnização superior à correspondente à parte da casa que seja necessária, avaliada esta pela quantia porque a comprara em praça com as despesas da mesma praça sem atenção alguma às benfeitorias que tivesse feito – ficando apenas com direito de dispor dos materiais provenientes da demolição. Declarando que o preço de arrematação a que se aludia foi de cento e sessenta e cinco mil e quinhentos réis, fazendo várias considerações e estranhando que a referida portaria não fosse encontrada mais cedo…. a presidência propôs, e a comissão aprovou, que se dirija a El-Rei uma representação pedindo a conclusão da rampa, que comunica a Rua do Rosário com o Largo de S. João, e a demolição da dita casa, que dela faz parte de harmonia com o texto daquela portaria, o que representava apreciável economia para o tesouro – sabendo-se ainda que para este melhoramento, que representava uma necessidade pública, de há anos reclamada, já o dinheiro estivera depositado, sendo depois distribuído para outras obras do distrito.»
    E «a representação seguiu para o seu destino em 21 do mesmo mês – extensa, clara, elucidativa, com os pontos nos ii, um primor no género, finalmente. / Mas de nada valeu recorrer para El-Rei[11] …».
   Continuaram as contestações e, em 1910, uma nova «representação…vai subir às instâncias competentes e que visa a demolir aquele sólido edifício do largo de Camões, mais resistente ainda do que a histórica Bastilha… No entanto a solicitude do ilustre deputado por este círculo, o nosso distinto conterrâneo e amigo Padre Araújo Lima, e o são critério do ilustre Ministro das Obras Públicas, devem ser, como se faz sentir na aludida representação, o penhor seguro do bom êxito que antevemos ao empreendimento iniciado… finalmente a iniciativa de alguém tomou voluntariamente sobre si a incumbência de solicitar as assinaturas necessárias à representação e, após esta afadigosa tarefa, tomou a liberdade de as fazer subir às instâncias superiores, confiado no patrocínio do ilustre deputado Sr. Araújo Lima e na rectidão do Sr. Moreira Júnior…»[12]
  Pois também esta «enérgica e bem fundamentada representação copiosamente assinada pelo clero, nobreza e povo, desta vila e redondezas…»[13] não surtiu os desejados efeitos.
   Mudou o regime e a contestação permaneceu. Os jornais Cardeal Saraiva e O Comércio do Lima iam traduzindo o pensamento dos que pugnavam pelo derrube. Por vezes, jogando um pingue-pongue de picardias, mostrando as suas diferenças.   
   O cardeal Saraiva não esquecia de ir referindo que o «Kiosque do Ventura» também dá por Café da Ponte. E nessa ocupação, se ela teve maior materialização do que a do tal kiosque autorizado em 1905, e a fotografia a ilustrar este texto deixa sugerir, e que o jornal Cardeal Saraiva foi repetindo em alguns números, pelo menos a partir do 64 de 14 de Agosto de 1912, deve ter aproveitado bem diversas Feiras Novas.
   E é ainda o jornal Cardeal Saraiva quem pede celeridade no processo, «a ver se nos poupavam a maçada e o gasto de fotografar tão horrendo espigueiro pela retaguarda. Porque pela frente, como se vê na nossa gravura, ainda parece coisa de jeito.»[14]
   Maçada e gasto a que o jornal não se conseguiu eximir. No seu número 85, de 22 de Janeiro de 1913, lá está ela impressa.
  Quiçá, um pouco mais de paciência tinha mesmo poupado ao jornal a maçada e o gasto referidos. É que a 24 de Fevereiro de 1913, o Dr. Manuel José de Oliveira levou o assunto até ao Senado, solicitou «…os necessários passos para a demolição de um imundo e desgracioso kiosque que numa das extremidades da ponte tanto desfeava o mais importante e o mais formoso largo de Ponte de Lima, dependendo isso exclusivamente das obras públicas do distrito, cuja morosidade bem ásperas censuras merece» e desfez as dúvidas levantadas pelo Sr. Ministro do Fomento, António Maria da Silva, quanto a hipotéticos direitos que impediriam ou, pelo menos, prejudicariam essa demolição.
    Ou não teria poupado nada, ainda assim só a 1 de Setembro, desse ano de 1913, «o celebérrimo Quiosque do Ventura, de infeliz memória, começou a ser demolido pelas mãos iconoclastas de quatro possantes operários.»[15]

  
  
  



[1] -de 27 de Outubro de 1874, assinada pelo Ministro das Obras Públicas António Cardoso Avelino, conforme referido na Acta da Câmara Municipal de Ponte de Lima, sessão de 11 de Janeiro de 1908.
[2] - Plácido Pereira de Araújo faleceu a 26 de Dezembro 1902.
[3] - Acta da Sessão da Câmara Municipal de Ponte de Lima, de 27 de Maio de 1905.
[4] - Acta da Sessão da Câmara Municipal de Ponte de Lima, de 10 de Julho de 1909.
[5] - O Commercio do Lima, n.º 5, Ponte de Lima, 19 de Setembro de 1906.
[6] - Feliciano Augusto da Cunha Guimarães (1885-1959), natural de Ponte de Lima, futuro médico e professor catedrático da universidade de Coimbra, entre outras importantes ocupações. Foi, ainda, um apreciável artista e escritor. Melhor e completa informação em Doutor Feliciano Guimarães, de João de Araújo Pimenta, Figuras Limianas, Coordenação de João Gomes d’Abreu, Município de Ponte de Lima, 2008.
[7] - O Commercio do Lima, n.º15, 29 de Novembro de 1906.
[8] - O Commercio do Lima, n.º 7, 04 de Outubro de 1906.
[9] - O Commercio do Lima, n.º 20, 03 de Janeiro de 1907.
[10] - Acta já referida na nota n.º 1.
[11] - Cardeal Saraiva, n.º 85, Ponte de Lima, 22 de Janeiro de 1913.
[12] - O Commercio do Lima, n.º 187, 09 de Abril de 1910.
[13] - O Commercio do Lima, n.º 189, 23 de Abril de 1910.
[14] - Cardeal Saraiva, n.º 77, 20 de Novembro de 1912.
[15] - Cardeal Saraiva, n.º 162, 03 de Setembro de 1914.

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