O KIOSQUE DO VENTURA
José Sousa Vieira
Plácido era o nome do morador que, por
Portaria Régia[1],
foi autorizado a efectuar obras na parte exterior da sua casa contígua à Ponte
(de Ponte de Lima), do lado norte.
Com placidez ou não decorreu a utilização
desse local, a mando do conhecido comerciante Plácido Pereira de Araújo, que no
ano da sua morte, 1902[2], tinha sido Presidente da
Direcção dos Bombeiros Voluntários de Ponte de Lima.
Na posse de Boaventura José Alves, apesar
da enorme e prolongada resistência às tentativas das autoridades e da principal
imprensa local e às inclemências climáticas que tão mal tratada deixaram a sua
vizinha, por exemplo, no dia 22 de Dezembro de 1909, lá se foi aguentando até
1913 e deixando tentáculos de ironia e memória por muito mais tempo.
Porquê ficou conhecido como «Kiosque do
Ventura» não sabemos. Tanto mais que, na realidade, para «Kiosque» no largo de
Camões, tinha solicitado Boaventura José Alves a respectiva licença (Sessão da
Câmara Municipal de 22 de Abril de 1905), a mesma lhe tinha sido concedida
nesse ano, a 27 de Maio, e pelo período de dois anos, «conforme o desenho junto
ao requerimento, e as mesmas medições, diâmetro e base rectangular, em frente
da casa do requerente e a dentro do caixilho de cantaria, do mencionado largo
de Camões…»[3], mas, primeiro porque o
tempo de licença concedido não lhe parecia susceptível de justificar o
investimento, depois, sendo o tempo aumentado para nove anos se condicionado a
hasta pública, porque possivelmente não se quis sujeitar à mesma, o «Kiosque»,
o do Ventura, não passou de intenção, como confirma, em novo requerimento que
lhe foi indeferido[4],
o próprio Boaventura José Alves.
O que sabemos, sem mais recuadas
indagações, é que logo no seu segundo número, datado de 30 de Agosto de 1906, o
jornal O Commercio do Lima (um novo, não aquele em que António Feijó tinha criado,
em 1880, a sua história dos Carecas) reclamava: «urge que o principal Largo da
nossa vila seja embelezado como merece, retirando-se daí esse casarão,
verdadeira monstruosidade repelente.»
Em número posterior[5] é na gazetilha, da
responsabilidade de Risonho[6], com a ironia própria
dessas criações, que volta o espaço. «…Eis logo à entrada a figura/Feita de
lousa e caliça/Da soberta arquitectura/Do chalet-cavalariça/Do nosso amigo
Ventura./(…)».
Mais tarde[7], Risonho volta ao assunto,
com o cepticismo que os temas provocavam. «… Quando a neve fôr escura,/E,
quando o fogo cair/Em orvalho à terra impura;/Quando fizerem cair/O tal chalet
do Ventura;// Posto que se vê que anima/O patriotismo a quem/Nos representa lá
em cima,/Só então é que nos vem/A linha do Val’ do Lima.»
Entretanto[8], já se tinha escrito que
«ali à boca da ponte, junto ao largo de Camões, num dos locais mais formosos e
no mais frequentado desta vila, levanta-se, pesado como a abóboda dum cárcere,
negro como as intenções dum criminoso, repelente como um espectro, destoante
como mancha escura em nevado arminho de pureza, um casarão indecente, um
pardieiro infecto!». E prosseguindo outras afirmações com o mesmo dramatismo,
continua: «Para quê?/ Para ficar aí um atestado eloquentíssimo de que o egoísmo
no poder obceca os homens a ponto de sustentarem caprichos com que nada lucram
e com que muito prejudicam. / Não vemos que outra razão assista a quem teima em
conservar esse montículo de pedras denegridas e de tábuas sujas e mal pregadas,
desfeando notavelmente este formoso local e cobrindo-nos de ridículo aos olhos
de quem nos visita.» E, entre outras considerações, explica que «duas vezes se
fez dotação para demolir o prédio em que vimos falando, mas ninguém se
aproveitou do dinheiro e da ocasião. E porquê? Lá está o egoísmo no poder que
cria loucos caprichos que se pretendem sustentar! …».
No mesmo jornal[9], percebemos que a dotação
para a expropriação de «o Kiosque do Ventura» não surte efeito devido à
«inconcebível - ainda politicamente considerada – protecção ao proprietário, ou
arrelia ao nosso senhorio» (o tal prédio do Boaventura frenteava o edifício
onde, então, se instalava a redacção do jornal e, também, a tipografia
Confiança em que ele era impresso).
No início do ano seguinte[10], é o Presidente da
Comissão Administrativa da Câmara, António de Magalhães…, ao revelar a Portaria,
até então esquecida, a criar novas expectativas aos defensores da demolição do
edifício. De facto, diz-nos ele, que a licença para se efectuarem as obras
obrigava o requerente «a seguir na execução das ditas obras as indicações que
lhe fossem feitas pela direcção das Obras Públicas do distrito e a assinar
termo em que ficasse claramente estatuído que, quando o Estado precisasse
adquirir, para alargar a ponte ou para qualquer outro fim de utilidade pública
o terreno do leito do rio que ia ocupar, não exigiria ele requerente
indemnização alguma por esse terreno, sobre o qual não tinha direito algum de
propriedade e apenas a posse que por aquele diploma lhe era permitida, e que
não poderia igualmente receber indemnização superior à correspondente à parte
da casa que seja necessária, avaliada esta pela quantia porque a comprara em
praça com as despesas da mesma praça sem atenção alguma às benfeitorias que
tivesse feito – ficando apenas com direito de dispor dos materiais provenientes
da demolição. Declarando que o preço de arrematação a que se aludia foi de
cento e sessenta e cinco mil e quinhentos réis, fazendo várias considerações e
estranhando que a referida portaria não fosse encontrada mais cedo…. a
presidência propôs, e a comissão aprovou, que se dirija a El-Rei uma
representação pedindo a conclusão da rampa, que comunica a Rua do Rosário com o
Largo de S. João, e a demolição da dita casa, que dela faz parte de harmonia
com o texto daquela portaria, o que representava apreciável economia para o
tesouro – sabendo-se ainda que para este melhoramento, que representava uma
necessidade pública, de há anos reclamada, já o dinheiro estivera depositado,
sendo depois distribuído para outras obras do distrito.»
E «a representação seguiu para o seu
destino em 21 do mesmo mês – extensa, clara, elucidativa, com os pontos nos ii,
um primor no género, finalmente. / Mas de nada valeu recorrer para El-Rei[11] …».
Continuaram as contestações e, em 1910, uma
nova «representação…vai subir às instâncias competentes e que visa a demolir
aquele sólido edifício do largo de Camões, mais resistente ainda do que a
histórica Bastilha… No entanto a solicitude do ilustre deputado por este
círculo, o nosso distinto conterrâneo e amigo Padre Araújo Lima, e o são
critério do ilustre Ministro das Obras Públicas, devem ser, como se faz sentir
na aludida representação, o penhor seguro do bom êxito que antevemos ao
empreendimento iniciado… finalmente a iniciativa de alguém tomou
voluntariamente sobre si a incumbência de solicitar as assinaturas necessárias
à representação e, após esta afadigosa tarefa, tomou a liberdade de as fazer
subir às instâncias superiores, confiado no patrocínio do ilustre deputado Sr.
Araújo Lima e na rectidão do Sr. Moreira Júnior…»[12]
Pois também esta «enérgica e bem fundamentada
representação copiosamente assinada pelo clero, nobreza e povo, desta vila e
redondezas…»[13]
não surtiu os desejados efeitos.
Mudou o regime e a contestação permaneceu.
Os jornais Cardeal Saraiva e O Comércio do Lima iam traduzindo o pensamento dos
que pugnavam pelo derrube. Por vezes, jogando um pingue-pongue de picardias,
mostrando as suas diferenças.
O cardeal Saraiva não esquecia de ir
referindo que o «Kiosque do Ventura» também dá por Café da Ponte. E nessa
ocupação, se ela teve maior materialização do que a do tal kiosque autorizado
em 1905, e a fotografia a ilustrar este texto deixa sugerir, e que o jornal
Cardeal Saraiva foi repetindo em alguns números, pelo menos a partir do 64 de
14 de Agosto de 1912, deve ter aproveitado bem diversas Feiras Novas.
E é ainda o jornal Cardeal Saraiva quem pede
celeridade no processo, «a ver se nos poupavam a maçada e o gasto de fotografar
tão horrendo espigueiro pela retaguarda. Porque pela frente, como se vê na
nossa gravura, ainda parece coisa de jeito.»[14]
Maçada e gasto a que o jornal não se
conseguiu eximir. No seu número 85, de 22 de Janeiro de 1913, lá está ela impressa.
Quiçá,
um pouco mais de paciência tinha mesmo poupado ao jornal a maçada e o gasto
referidos. É que a 24 de Fevereiro de 1913, o Dr. Manuel José de Oliveira levou
o assunto até ao Senado, solicitou «…os necessários passos para a demolição de
um imundo e desgracioso kiosque que numa das extremidades da ponte tanto
desfeava o mais importante e o mais formoso largo de Ponte de Lima, dependendo
isso exclusivamente das obras públicas do distrito, cuja morosidade bem ásperas
censuras merece» e desfez as dúvidas levantadas pelo Sr. Ministro do Fomento,
António Maria da Silva, quanto a hipotéticos direitos que impediriam ou, pelo
menos, prejudicariam essa demolição.
Ou
não teria poupado nada, ainda assim só a 1 de Setembro, desse ano de 1913, «o
celebérrimo Quiosque do Ventura, de infeliz memória, começou a ser demolido
pelas mãos iconoclastas de quatro possantes operários.»[15]
[1] -de 27 de Outubro de 1874,
assinada pelo Ministro das Obras Públicas António Cardoso Avelino, conforme referido
na Acta da Câmara Municipal de Ponte de Lima, sessão de 11 de Janeiro de 1908.
[2] - Plácido Pereira de
Araújo faleceu a 26 de Dezembro 1902.
[3]
- Acta da Sessão da Câmara Municipal de Ponte de Lima, de 27 de Maio de 1905.
[4]
- Acta da Sessão da Câmara Municipal de Ponte de Lima, de 10 de Julho de 1909.
[5] - O Commercio do Lima, n.º
5, Ponte de Lima, 19 de Setembro de 1906.
[6] - Feliciano Augusto da
Cunha Guimarães (1885-1959), natural de Ponte de Lima, futuro médico e
professor catedrático da universidade de Coimbra, entre outras importantes
ocupações. Foi, ainda, um apreciável artista e escritor. Melhor e completa
informação em Doutor Feliciano Guimarães, de João de Araújo Pimenta, Figuras
Limianas, Coordenação de João Gomes d’Abreu, Município de Ponte de Lima, 2008.
[7]
- O Commercio do Lima, n.º15, 29 de Novembro de 1906.
[8]
- O Commercio do Lima, n.º 7, 04 de Outubro de 1906.
[9]
- O Commercio do Lima, n.º 20, 03 de Janeiro de 1907.
[10] - Acta já referida na
nota n.º 1.
[11] - Cardeal Saraiva, n.º
85, Ponte de Lima, 22 de Janeiro de 1913.
[12] - O Commercio do Lima,
n.º 187, 09 de Abril de 1910.
[13]
- O Commercio do Lima, n.º 189, 23 de Abril de 1910.
[14] - Cardeal Saraiva, n.º
77, 20 de Novembro de 1912.
[15] - Cardeal Saraiva, n.º
162, 03 de Setembro de 1914.
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