sexta-feira, 24 de junho de 2022

...na Sentença de Desagravo de D. João III, a 17 de Fevereiro de 1537...é referida, entre outras, a festa a S. João Baptista...

 


...na Sentença de Desagravo de D. João III, a 17 de Fevereiro de 1537...é referida, entre outras, a festa a S. João Baptista...


De Diogo Bernardes – O Nosso Elegante Teatro:

 

1.     UMA POVOAÇÃO NA ROTA DO ESPECTÁCULO [excerto]

 

1.1  - A FEIRA E A PONTE

  «No século XII, o lugar de Ponte não era pobre, nem pouco povoado, nem desprovido de acessos porque tinha o rio, os atalhos, a ponte e a estrada da época dos romanos a servir o vaivém dos homens na rota da feira, das festas, das tropas e das jornadas peregrinas. Por aqui passavam os bufões, que tinham acompanhado a turbamulta dos mercenários suevos, a arregalar os olhos da assistência com o atrevimento das suas danças, velhacarias, diabruras, chistes, caretas e disfarces… Mais tarde, no tempo da vila medieval chegam outros marginais: menestréis, jograis, bailarinas, ciganas, charlatães e trupes de saltimbancos.»[1]

   E assim por outros tempos, enquanto terra a bordar a única ponte[2] existente a unir as duas margens que o rio Lima separava, e após, onde a feira[3] criava um bulício especial, de homens e suas transacções, muito além do quotidiano.  

   Com o crescimento e estruturação do concelho passam também a pertencer-lhe os usos e costumes dos vulgos anexados, as suas crenças e diversões.

 

   1.2 – FESTIVIDADES. OS TURCOS DE CRASTO. 

   Do contencioso gerado por decisão do Corregedor da Comarca a 28 de Março de 1536, na Sentença de Desagravo de D. João III, a 17 de Fevereiro de 1537,[4] consta que algumas práticas são consideradas de antigo e imemorial uso e costume que sempre fora na dita Vila (Ponte de Lima) por honra da Festa de Corpus Christi. E nela, que a esta localidade poderá ter chegado praticamente nos alvores da sua introdução em Portugal em Coimbra, festa a 1266 e com procissão a 1307,[5] como é conhecido, os espectáculos rivalizavam, quando não se fundiam ou turbavam, a religiosidade. A «procissão até 1749 fazia-se...com as cenas burlescas, ridículas e grotescas dos grémios dos diferentes mesteres, danças, folias, coros de diabos e diabas com seus uivos e lubricidades que divertiam o povo. Atrás disto seguia um homem a cavalo, figurando de S. Jorge com seu pajem, e após a Procissão séria, como hoje se usa. Aquelas caricaturas acabaram em 1750 com a proibição que se contém na Provisão de D. João V, passada em Março desse ano…».[6]

   Na mesma sentença é referida, entre outras, a festa a S. João Baptista e é nela que haveremos de encontrar, com maior e continuada expressão, os “Bailes,”[7]  de que alguns de cariz mais religioso chegaram a acompanhar a procissão com referências já na segunda metade do século XIX, em que o canto, a dança, a música e os diálogos se podiam unir e espalhar essas representações, diversificadas (dos Pretos Grandes, dos Pretos Pequenos, dos Canecos, dos Velhos, das Feiticeiras, dos Galegos, do Penedo, dos Pastores, da Mão de Deus, de Isabel e Zacarias, Galateia, dos Alfaiates, dos Sapateiros, dos Lavradores, dos Camponeses, das Camponesas, Uma freguesia em desordem, da Espadelada (as espadeladeiras), do Rei David, Processo do Rasga, O Povo do nosso lugar, etc.), por toda a vila. E se, por quase todos, eles eram considerados como fazendo “as delícias deste bom povinho…”,[8] “já pela sua originalidade, como pela hilaridade que provocam…”,[9]são sempre a alegria e o divertimento indispensável ao bom humor do nosso povo”,[10] em contraste flagrante também se referiu que “em verdade não sabemos se nos causa repugnância, gargalhadas ou nojo ver que a festividade dum santo…é aqui celebrada com rapazes quase nus, sujos, pintados de preto e felugem e água, fazendo pelas ruas trejeitos malcriados, selvagens, com uns regougos de sandices na maior parte obscenas. / Os tais bailes são isto: - uma selvageria.”[11]

 

    Habitualmente ao ar livre e desempenhadas por amadores locais, por vezes reforçados com elementos de outras terras,[12] ou oriundos de outras freguesias com companhia itinerante formada, como é o exemplo da de Comédia do Melinho,[13] as récitas (comédias, dramas, bailes, etc.) foram tendo lugar em festividades realizadas em muitas das freguesias do concelho limarense (entre outras, Ribeira – Nossa Senhora da Abadia, Senhor da Cruz de Pedra, Santo António; Arcozelo – Nossa Senhora das Dores, Senhora da Luz, Senhor dos Aflitos, S. Pedro; S. Martinho da Gandra – Nossa Senhora da Rocha; Calheiros – Senhor dos Perdidos; Correlhã – Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora das Neves; Estorãos – Santo Amaro; vila – S. Benedito, S. Pedro na rua António Feijó (Pinheiro), S. João; Calvelo – Senhor do Calvário; Bárrio – Nossa Senhora da Abadia).

  A mais persistente é a da «Turquia» (Drama das Grandes Guerras entre Turcos e Cristãos). Com rigor, não se conhece quando se iniciou nem quem a trouxe. Parece certo que não foi criada localmente e, desde que a imprensa escrita a acompanha, sabemos que está associada à festa ao Senhor da Cruz de Pedra, no lugar de Crasto, na freguesia da Ribeira, Ponte de Lima.[14]   Desde sempre a referida imprensa lhe atribuiu antiguidade. Por exemplo, em 1892,[15] embora a considerasse produção local, precisava: «A pantomina dos «turcos e cristãos», peculiar dos de Crasto foi exibida a rigor, com denodo e saber entre as hostes beligerantes! / Os papéis, que dão água pela barba, de parte a parte foram executados sem vergonha para as caveiras das passadas gerações do lugar, que inventaram num arranque de catolicismo e mandaram para a posteridade tão famosa composição, que teve certamente o beneplácito do «Santo Ofício» …/ O povo aplaudiu, se não com tanta fé ao menos com entusiasmo igual ao dos espectadores de há cem anos!».

  A primitiva descrição, que dela conhecemos,[16] ajuda a confirmar a sua antiguidade e a informação difundida por Cláudio Basto[17] quanto a haver “sofrido, pelos anos adiante, modificações e aditamentos…”: «Seriam 3 horas da tarde ouvem os muitos romeiros que ali se achavam quase ao mesmo tempo dois hinos guerreiros um do lado da igreja paroquial da freguesia, e outro do desta vila, e pouco depois chegam daquele perto de vinte cristãos armados de lanças com uma banda de música de arraial à frente, os quais pararam em frente à capela do Senhor festejado e igual número de turcos do lado oposto, com alfanges e outra banda de música, que se colocaram em frente da casa do Sr. José Manuel Gonçalves, mediando entre uns e outros cem metros da nova estrada, orlada com os globos da iluminação da véspera.

     Aflui o povo de todas as partes, admiram-se os seus vestuários e armaduras e especialmente do rei daqueles, e sultão destes, e dos generais de ambos os bandos.

     Mal se avistam não lhes sofre o ânimo conterem-se, e uma partida de seis de cada lado caminham para a frente, e antes que os turcos usassem das suas armas os cristãos dão dois tiros, matando dois turcos, um antes de uma delas se desfechar, (tal foi o medo) e o outro depois, que ficam estirados no meio da estrada fugindo todos os restantes dez a reunir-se ao grosso da sua respectiva tropa.

     Os turcos assanham-se e marcham sobre os cristãos que fogem a encerrar-se precipitadamente no seu castelo de modo que lhes apanhados uns poucos de burros com bagagens, dois dos quais são aproveitados para conduzir escarranchados os dois turcos mortos, que vão fazendo cortesias com os olhos fechados. Os turcos altivos com a sua tomadia recolhem-se à sua praça, e querendo aproveitar a ocasião, depois de informados por espias da posição dos cristãos invadem o castelo e tomam-no, mas por uma incúria só própria do seu general, e do sultão que só tratava de mirar-se a si, e ao muito ouro que trazia ao pescoço; deixam a sua praça sem guarnição, de forma que os cristãos fugidos e acossados metem-se nela e aí se fortalecem.

     Aparecem parlamentários de uma parte e de outra, e põem-se a comer à mesma mesa, até que um mata o outro, fugindo o vivo para o lado dos seus e arrastando-se o morto para onde lhe conveio.

     Ambos os exércitos porém resolvem vir às mãos, batem-se em pelotões de quatro a quatro e depois de dois e dois, batendo com as armas nos escudos dos adversários em três encontros que têm lugar no meio da arena em corridas desordenadas ao toque de música. Em seguida batem-se um a um, e no fim das investidas cada soldado cristão vai arrastando o seu turco, depois o general daqueles arrasta o destes, e por último o rei faz o mesmo ao sultão, no meio de risadas estrepitosas e assim acabou a acção…».

  E se depois deste relato se assegurou que “o famoso episódio dos Turcos, de estilo nesta romaria, e que de largos anos tem passado de pais a filhos, invariável, uniforme, sem a maior uma simples peripécia, zombando assim da filosofia, que assevera que o mundo, e as coisas dele sempre caminham, sob o benefício influxo de um novo mundo, que se diz Progresso!,”[18] é certo que, para além de personagens e atavios, pelo menos em representações posteriores ao que nos é asseverado de que “de ordinário se representam combates de mouros e cristãos, que terminam pela morte dos primeiros a fio ou ponta de espada dos segundos,”[19] o invariável caiu, e a morte da totalidade dos turcos foi substituída pelo baptismo da maioria, como as récitas mais próximas nos confirmam.

 

 



[1]              DANTAS, Catarina; DANTAS, Luís – O Circo em Ponte de Lima, Luís Dantas, 2009, pg. 27.

[2]              ALMEIDA, Carlos A. Brochado – A Via XIX em Território Limiano, Município de Ponte de Lima, 2008, pg. 12.

[3]              RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas – subsídios para o seu estudo, Editorial Presença, 1983 (2.ª edição), pg. 63/64

[4]              VIEIRA, Ovídio Sousa; COSTA, Ana Cristina Amorim – Correr Touros em Ponte de Lima – A Vaca das Cordas, Comissão Organizadora da Vaca das Cordas, 1998, págs. 56-61.

[5]              AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.) – História Religiosa de Portugal, Volume 2, Círculo dos Leitores, 2000, pg.564.

[6]              LEMOS, Miguel Roque Reis – Apontamentos para as Memórias das Antiguidades de Ponte do Lima, 1873, p.67 (PT/MPTL/CMPTL35/C-F/003)

[7]                Em «Uma simples chamada de atenção…», O Anunciador das Feiras Novas, II Série, n.º III, 1986, Maria Emília Sena de Vasconcelos escreve, com base em informações de Severino Costa, “que alguns destes «Bailes» comportavam «história», (enredo, composição…) ”. No Arquivo Municipal de Ponte de Lima é possível espreitar documentos referentes a uma reconstituição do Baile da espadelada, onde não falta a “parte cénica” (PT/MPTL/GBE).

[8]              Jornal Vida Nova, Viana do Castelo, n.º 262, 26 de Junho de 1894.

[9]              Jornal Cardeal Saraiva, Ponte de Lima, n.º 152, 18 de Junho de 1914

[10]            Jornal Rio Lima, Ponte de Lima, Ano 2.ª, n.º 16, 15 de Junho de 1924.

[11]            Jornal O Echo do Lima, Ponte de Lima, n.º 1397, 27 de Junho de 1880.

[12]              Como nesta em que “adoeceu o Santo…num dos domingos últimos, numa das aldeias deste concelho” numa “festa a Santo António…” onde “se fez um tablado para a representação do drama sacro St.º António; e segundo nos dizem, quem desempenhava o papel do Santo era cá da nossa vila. / O dia estava quente; e por isso a secura era natural. O homem comeu bem, bebeu melhor; e o pano do tablado corre-se. Por certo que era para começar o espectáculo. E assim foi. O espectáculo começa; os actores vão desempenhando os seus papéis, senão como deviam, ao menos como podiam, e os aplausos e saudações fervem sobre eles. / Quando o entusiasmo chegava a delírio, aparece uma pequena interrupção. No palco nota-se descontentamento e dentro do cenário manifesta-se um tal ou qual alvoroço. Tudo ficou silencioso por momentos e o palco despovoado de actores. Os espectadores interrogavam uns aos outros. E, quando se estava neste ponto, aparece um dos actores, dando a seguinte notícia. «Não continua o espectáculo, porque adoeceu o santo.»/ Vago rumor entre os espectadores; e tudo se retira com o maior sentimento. / Averiguado o caso, fora uma indigestão, porque o homem está óptimo. E assim acabou tão tristemente a festividade.” (Jornal O Echo do Lima, Ponte de Lima, n.º 599, 18 de Julho de 1872.)

[13]            “Representação cheia de cor local, com um pronunciado cachet provinciano” sendo o Melinho, numa apreciação onde não sabemos o tamanho da ironia, “uma vocação artística completamente perdida, segundo dizem alguns estendedores. A sua figura graciosa, deveria exibir-se ao calor mordente da rampa iluminada pelo gás da ribalta, e os seus braços eram mais próprios para os grandes gestos trágicos do teatro de Shakespeare, do que para o fabrico do cerol e para retesar com fúria a presilha ensebada do tirapé. / Eis aqui um grande dilema imposto pela sorte à maleabilidade dos destinos humanos: - ser um génio ou um sapateiro…” (Jornal O Commercio do Lima, Ponte de Lima, n.º 198, 10 de Setembro de 1879.)

[14]              REIS, António Matos (1980, Origem da «Turquia» de Crasto, Almanaque de Ponte de Lima) e SOUSA, João R. (1984, Turquia – Drama das Grandes Guerras entre Turcos e Cristãos), talvez os mais recentes investigadores a estudarem a peça, coincidem em designá-la de teatro popular de terreiro, tardo-medieval, dos fins do séc. XV ou inícios do século XVI, e de que não é originária do concelho de Ponte de Lima.

[15]              Jornal A Semana, Ponte de Lima, n.º 19, 18.08.1892.

[16]            Jornal O Echo do Lima, Ponte de Lima,  n.º 510, 27.08.1871

[17]            BASTO, Cláudio (1917-1918, Lusa – Folha quinzenal de letras e ciências, Viana do Castelo, Ano I, n.º 15-16, 15 Out e 1 Nov 1917, pg. 119-124 e Ano II, n.º 30, 1 de Junho de 1918, p.45)

[18]            Jornal O Echo do Lima, Ponte de Lima, n.º 709, 21 de Agosto de 1873.

[19]            Jornal O Commercio do Lima, Ponte de Lima, n.º 195, 20 de Agosto de 1879.

Ilustração: Postal de figuração do Baile da Dança do Rei David, na cidade de Braga.

 


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