quarta-feira, 6 de junho de 2007

A Vaca das Cordas em Ponte de Lima, vista por Luís Dantas

Conforme prometido, segue o texto da intervenção de Luís Dantas.

A VACA DAS CORDAS EM PONTE DE LIMA

Sobre esta obra, «A Vaca das cordas em Ponte de Lima», disse o Manuel Pires Trigo no «Alto Minho»: «o autor ou não quis tirar conclusões ou não achou os elementos bastantes.» E é tudo verdade. Deixei isso para o leitor, para os leitores. E tinha as minhas razões: não há verdade absoluta quando se procura o tempo perdido na História. Surgem sempre espaços vazios. Faltam documentos. Lidamos por isso com o silêncio. Mas ainda bem que estamos aqui reunidos para voltar a este tema tradicional da nossa vila, para evocar o passado e reflectir acerca deste costume nos dias que passam.
Li quase tudo o que se tinha escrito sobre a «Vaca das Cordas». Li o Miguel de Lemos. Deixei-me encantar pela sua tese. Procurei aprofundá-la, mas desisti. As fontes que foi consultando, abriram‑me outros caminhos, não os da mitologia egípcia. Foi em Creta, na Grécia e em Roma que encontrei «elementos estáveis de uma infinidade de gerações», isto é, foi nessas civilizações que encontrei quadros do tempo da nossa vida ou da nossa cultura.
Virgílio ( o mais célebre dos poetas latinos que viveu entre 71 e 19 ª C.), fala-nos das festas em Honra de Ceres, das três voltas mágicas: «em redor dos trigos já nascidos três vezes se passeie a vaca» - a vaca que vai ser sacrificada, não qualquer uma: «a melhor vaca», diz ele, «é a que tem o olhar carrancudo, pescoço muito grosso, barbela caída e toda ela deve ser grande e forte; que seja rebelde à canga e dada a investir com o arreganho de toiro». Numa ou outra festa ( em honra de Baco ou de Júpiter, por exemplo) as oferendas mais frequentes eram os bois ainda novos. Na obra « A Vida Quotidiana em Roma no Apogeu do Império» aparece um registo sobre um desses animais que «estica e sacode a sua corda e agita uma fronte ameaçadora, bezerro já feroz, maduro para os templos e para o altar, que vai ser regado pelo vinho puro.» Queria aqui sublinhar «regado pelo vinho puro».
Vamos agora evocar em cenas breves o templo e o ritual na tradição romana.
Os sacerdotes ataviavam os animais com uma grinalda de flores à volta do pescoço e colocavam a faixa sagrada.
No altar, o sacerdote provava o vinho e dava-o a provar também aos devotos e o resto era despejado sobre os cornos do animal. Pouco depois o animal era degolado. Repartia‑se a carne. No final do rito bebia-se vinho outra vez e o benfeitor ou a confraria honrava o povo com banquetes, danças e espectáculos.
Esta festa era organizada por um aristocrata rural, pelo favor de grandes famílias, por um grupo corporativo ou pela comunidade da aldeia ou vila.
A primeira conclusão que podemos tirar é que o costume de correr a vaca ou o boi em três voltas mágicas, a oferta e o sacrifício desses animais, as cerimónias (a grinalda de flores, provar e entornar o vinho nos cornos do animal, a festa e o banquete) vem directamente dos romanos. O costume esteve vivo até há bem pouco não só em Ponte de Lima, mas em muitos outros lugares.
Os registos municipais (já em 1536 e 1537) referem o antigo uso e costume de correr touros em quatro das nossas festas anuais. Mas não sei qual é verdadeiramente este conceito de corrida de toiros. A corrida fazia‑se «dentro de cancelas» ou «circo», não há dúvida. Não é de excluir a hipótese da corrida à corda em volta da igreja. Mas não encontramos a expressão «vaca das cordas» nos documentos mais antigos. Ela só aparece nos arquivos municipais de 1646.
E chegamos à segunda conclusão : temos corrida de toiros ( e muito provavelmente tourada à corda ou corrida da «vaca das cordas») há mais de 500 anos.
E por último: em Ponte de Lima, no século XVI, na festa do Corpo de Deus, os dirigentes do concelho ou os representantes do povo pagavam a corrida de toiros, a mourisca (danças e jogos) e um modesto banquete. Seria sempre assim? Comparando as histórias locais, devia também ter existido aqui famílias nobres, confrarias ou corporações - talvez a dos marchantes, que foram representantes do povo nas cortes do reinado de D. Fernando (1367-1380)- relacionadas com a oferta da vaca (do boi bento) para o sacrifício, para o bodo e festa. O boi bento foi durante muito tempo incorporado na nossa procissão do Corpo de Deus. Não existem do lado de cá relatos pormenorizados, mas é possível imaginar o que se passava noutras localidades. Em Cascais era assim: «este boi, enfeitado com flores, guizos e chocalhos, percorria a vila a correr. Atrás dele a garotada numa gritaria infernal invectivava: Boi bento, boi bento. Este, depois de morto, era distribuído pelos pobres, juntamente com o pão bento.» Assim devia ser aqui. Portanto, fica apenas o meu contributo: esta obra incompleta. E a ideia de que é preciso manter a tradição: engalanar o boi, dar vinho «do puro» a provar e entornar o resto nos cornos e dar as três voltas no sentido contrário ao ponteiro do relógio...

Luís Dantas

1 comentário:

--- disse...

Viva! Se souber onde posso arranjar este livro contacte-me por favor.

goncalobernardo@gmail.com